essa noite tive insônia. o pensamento pesava mais que o corpo, que todos os corpos que fui, que sou.
os olhos ardiam de mar, de sol e sal. colocava as mão nos ouvidos como conchas pra tentar esquecer o zumbido do pensamento. mas algumas melodias não nos deixam tão facilmente.
fiquei ali, olhando aquele teto, aquele escuro. 1, 5, 8, 10 anos lendo aquele mesmo livro, aquelas mesmas cartas, a mesma dúvida da certeza. 00h22, 01h45, 02h30, 03h42. botei um disco. na verdade botei duas palavras no aplicativo e ouvi músicas baixinho. queria ter botado um disco, olhado a cidade na janela sozinha, pra sentir alguma calma.
o teto escuro começou a se vestir de sol fraquinho. que desespero quando amanhece. quando o dia chega e diz que é preciso abrir os olhos que sequer fecharam. mas só teve calma. na mansidão do bom dia de quem se ama. minha solidão tem carinho no rosto com mãos pequenininhas e beijo babado no olho. me disseram que deixaria de ter insônia quando fosse mãe. e quem sabe o que acontece? nem a cartomante soube dizer que seria como ela disse.
tomei café e abri a agenda. tinha um papel amassado junto com a conta de telefone vencida. que descuido meu. tinha um poema junto com pacote de dados, juros e multas. que descuido.
e se eu acreditasse um pouco em sinais, diria que achar essas palavras de Conceição Evaristo teria algum sentido. mas eu acredito muito.
“Navego-me eu–mulher e não temo, sei da falsa maciez das águas e quando o receio me busca, não temo o medo, sei que posso me deslizar nas pedras e me sair ilesa, com o corpo marcado pelo olor da lama. Abraso-me eu-mulher e não temo, sei do inebriante calor da queima e quando o temor me visita, não temo o receio, sei que posso me lançar ao fogo e da fogueira me sair inunda, com o corpo ameigado pelo odor da chama. Deserto-me eu-mulher e não temo, sei do cativante vazio da miragem, e quando o pavor em mim aloja, não temo o medo, sei que posso me fundir ao só, e em solo ressurgir inteira com o corpo banhado pelo suor da faina. Vivifico-me eu-mulher e teimo, na vital carícia de meu cio, na cálida coragem de meu corpo, no infindo laço da vida, que jaz em mim e renasce flor fecunda. Vivifico-me eu-mulher. Fêmea. Fênix. Eu fecundo.”
Fêmea-Fênix, Conceição Evaristo
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